Equívocos em Pareceres do CFM e dos CRMs

Yehuda Waisberg – Médico/Oftalmologista – CRM-MG 7.640

Graduação FM-UFMG 1974 – Doutor em Oftalmologia-UFMG 1978; Professor Adjunto de Oftalmologia da UFMG (aposentado); atua como médico oftalmologista em seu consultório

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1. Pareceres do CFM e dos CRMs

Os Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) são responsáveis pelo registro de médicos e empresas que atuam no segmento da medicina. Tem o poder de definir as normas que devem ser respeitadas pelos médicos inscritos, no exercício da profissão. Ademais, tem a obrigação de proteger a sociedade, no que se refere à boa prática médica. Nesse sentido, tem o poder de fiscalizar e missão institucional disciplinar.

Muitas consultas sobre temas variados relacionados ao exercício da profissão médica são encaminhadas aos CRMs e ao CFM para orientação e para dirimir dúvidas. Para agilizar e padronizar a emissão de pareceres oriundos das consultas recebidas, o CFM emitiu diversas resoluções do CFM relativas ao procedimento da deliberação e emissão de Pareceres-consultas.  Cada uma dessas resoluções foi revogada e substituída pela que a sucedeu: Resoluções CFM nº 1.450/1995; nº 1.769/2005; 1.892/2009; nº 2.070/2014.

Segundo a Resolução CFM nº 2.070/2014, os processos-consulta originam-se de uma consulta e os autos devem conter a documentação para subsidiar ao relator na emissão do Parecer. Todos os pareceres precisam ser aprovados em plenária do Conselho. As consultas são respondidas em caráter impessoal, de forma genérica e não individualizadas. Quando se tratar de temas que necessitem de conhecimentos técnicos especializados, os conselheiros relatores poderão contar com a contribuição de câmaras técnicas dos Conselhos, de sociedades médicas, ou ainda da área acadêmica, para subsidiá-los na emissão do parecer. Os pareceres aprovados pelo CFM são comunicados aos CRMs.

O presente texto cita alguns pareceres emitidos por CRMs ou pelo CFM e discute a necessidade de maior transparência nos pareceres emitidos, revisão periódica dos pareceres já emitidos, cancelamento de pareceres ultrapassados e seleção rigorosa das consultas que devem gerar pareceres no futuro.

2. Equívocos em Pareceres do CFM e dos CRMs : alguns exemplos

No presente texto serão comentados quatro pareceres que tratam de questões relacionadas aos olhos: o Parecer CFM nº 21/2003, o Parecer CFM nº 8/2019, o Parecer CREMEB nº 05/09  e o Parecer Cremesp nº 22.538/2017.  

2.a            O Parecer CFM nº 21/2003, em sua ementa, conclui: “Lasik. Procedimento oftalmológico. Inexistência de obrigatoriedade de apresentação de consentimento do paciente.” O texto expositivo do Parecer, ao final, manifesta o entendimento do CFM: “o termo de consentimento só é exigível e obrigatório nos casos de pesquisa e que, considerando que a cirurgia de miopia pelo método lasik não se enquadra como cirurgia experimental, sendo de prática rotineira, o médico não está obrigado a aplicá-lo”. 

Comentário: A ementa do parecer CFM nº 21/2003 é extemporânea e absurda.  É incompreensível existir uma ementa do CFM que libera o médico de obter consentimento informado para realizar um procedimento cirúrgico eletivo, que não é parte da prática rotineira e que apresenta riscos e complicações bem conhecidas. O Parecer não deveria ter sido aprovado em plenário em 2003 e já deveria ter sido cancelado. É um exemplo de que os CRMs e CFM devem ser criteriosos para emitir pareceres-consulta e esses devem ser permanentemente revistos.

2.b           O Parecer Cremesp nº 22.538/2017, em sua ementa conclui: “O uso terapêutico do colírio de atropina para controle da progressão de miopia em crianças é reconhecido cientificamente possui eficácia comprovada. O Parecer CFM nº 8/2019, em sua ementa, conclui: “O uso de uma gota/noite de colírio de atropina (0,01%) para controle da taxa de progressão de miopia em crianças é de eficácia clínica comprovada e reconhecida cientificamente, devendo o seu fracionamento seguir as normas emanadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária”.

Comentário: O texto do Parecer do CFM nº 8/2019 se desenvolve ao longo de 24 páginas, assemelha-se a uma pequena revisão bibliográfica. Orienta os médicos a prescrever determinada droga, em crianças, à semelhança de uma bula de medicamento. À página 19, sob o subtítulo “Qualidade alta de evidência”, descreve que a qualidade das evidências científicas relacionada aos benefícios do tratamento é apenas baixa ou moderada. À página 20, o conselheiro-relator conclui que: “É adequado o uso de colírio de atropina na concentração de 0,01%, aplicando uma gota à noite, na miopia de início precoce (crianças) com o objetivo de reduzir a progressão da doença até a sua provável estabilização após a adolescência.

Não há unanimidade ou consenso com relação a esse tratamento. Pesquisa recente entre oftalmologistas pediatras na Índia (Kesarwani), relata que 65% dos entrevistados começaram a prescrever colírio de atropina 0,01 aos seus pacientes e que 47% manifestaram apreensão com os efeitos a longo prazo dessa medicação. Não é função dos CRMs ou do CFM validar o uso dessa medicação ou sugerir determinada prescrição e dosagem, frente a outras abordagens médicas utilizadas rotineiramente em crianças portadoras de miopia. 

2c.            O Parecer CREMEB nº 05/09 aprovado em 5/3/2009, em sua ementa, conclui: “A cirurgia refrativa pode ser indicada para trabalhadores que estejam impossibilitados de usar óculos, desde que estejam de acordo com as normas emanadas pelo CFM e que sejam devidamente acompanhados pelo oftalmologista assistente, que deverá fazer a indicação do procedimento.

Esse parecer apresenta uma ementa inútil, por vazia em seu conteúdo. Seu único objetivo parece ser manifestar a concordância e apoio do CRM à cirurgia refrativa, de forma genérica. Esse parecer tem a utilidade de apresentar um breve histórico de pareceres relacionados à cirurgia refrativa, CFM 1.459/1995, CFM 1.622/2001, Cremec 17/2002, CFM 1.762/05, CFM 1.843/2008. 

3. Discussão

A medicina não é uma instituição homogênea. Diagnósticos e tratamentos estão agrupados em “escolas” vagas que permeiam o setor de saúde. As opiniões médicas a respeito da interpretação e gerenciamento de sinais e sintomas são variadas e todas são mais ou menos legítimas (Freidson). Diferentes médicos, diante de um mesmo paciente, podem ter opiniões diversas com relação ao diagnóstico e ao tratamento mais indicado (Kaplan&Frosch).

Os CRMs e o CFM controlam o registro de médicos, clínicas, hospitais, laboratórios e estabelecem as normas a serem seguidas por aqueles registrados nos conselhos. Fiscalizam a boa prática médica, zelam pela saúde dos cidadãos e exercem função disciplinar. As atribuições dos conselhos não se confundem com aquelas da ANVISA ou ANS, do órgão americano Food and Drug Administradtion – FDA, ou de centros universitários. É impossível para os conselhos avaliar, aprovar, considerar usuais ou experimentais, todas as drogas, equipamentos, procedimentos e intervenções utilizados por médicos das diferentes especialidades em todos os rincões do País.

Todos e cada um dos médicos e empresas do setor de saúde devem atuar com zelo e competência, respeitar as normas ditadas pelo CFM e respondem pelos seus atos na esfera cível e criminal e, eventualmente, podem sofrer sanções disciplinares impostas pelo órgão fiscalizador.

Há que se evitar que alguns médicos ou grupos interessados em utilizar tal ou qual medicamento, intervenção ou procedimento, se utilizem dos CRMs, para validar ou respaldar condutas. É impossível para os CRMs acompanhar todos os tratamentos ou drogas constantemente introduzidas ou retiradas da prática médica. Médicos e empresas de saúde devem oferecer aos seus pacientes atendimento baseado em evidências científicas, com competência, dedicação e empatia, assim como lidar com sucessos e fracassos e eventualmente responder por seus erros.

Sob o ponto de vista procedimental é necessário implementar maior transparência nos processos-consulta aceitos e conduzidos pelos conselhos: devem ser públicos os nomes, a qualificação e o voto de todos os conselheiros envolvidos na emissão de pareces-consulta. Os pareceres devem conter, ainda, os nomes e qualificação dos membros de comissões ou câmaras técnicas que assistiram ao relator e de pessoas externas ou sociedades médicas que deram alguma contribuição. Deve ser revelado a existência de eventuais conflitos de interesse existentes para cada uma dessas pessoas ou entidades. Além disso, há necessidade de atualização periódica dos Pareceres, no que se refere aos seus conteúdos e, quando for o caso, cancelar Pareceres ultrapassados.

4. Conclusão

Os CRMs e o CFM tratam como algo rotineiro as consultas que recebem. Algumas consultas que originam pareceres dos conselhos se prestam a oferecer segurança jurídica à prática de procedimentos novos, ainda não adotados pela maioria dos médicos e podem atender a interesses econômicos dos médicos que recomendam esses procedimentos. 

É importante atualizar e dar maior transparência ao procedimento de elaboração de pareceres. Os pareceres devem conter, além do nome do relator, o nome e qualificação de todos os membros que participaram do plenário, membros da câmara técnica que contribuíram para a elaboração do Parecer-consulta. O autor da consulta e as informações relativas a ele devem ser reveladas, assim como a existência de conflitos de interesse para todos que participaram na elaboração e aprovação dos pareceres. É recomendável que seja revelado se a aprovação plenária ocorreu por unanimidade e tornar públicos os votos, a favor, contra ou abstenção, de cada conselheiro.

Há necessidade de atualização periódica dos pareceres-consulta no que se refere aos seus conteúdos e cancelar pareceres que se tornaram obsoletos ou ultrapassados em decorrência de mudanças nos costumes, no conhecimento e na prática médica. Há que se rever a emissão de pareceres cujo objetivo seja a validação de condutas médicas. Foge às atribuições do CFM avaliar cada uma e todas as abordagens terapêuticas dos médicos brasileiros, nas diferentes condições de trabalho e recursos que estão disponíveis, em todas as especialidades médicas. 

5. Referências

Decreto-Lei 7.955/ 1945 – Institui o Conselho Federal de Medicina e os Conselhos Regionais

Lei nº 3.268/1957 – Consolida os CRMs e o CF que adquirem autonomia técnica, funcional e administrativa

Lei nº 9.782/1999 – Cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária

Lei nº 9.961/2000 – Cria a Agência Nacional de Saúde – ANS

Parecer CFM nº 1.459/1995 – Classifica como usuais algumas modalidades de cirurgia refrativa e como experimentais outras modalidades

Parecer CFM nº 15/2001 – altera o entendimento do CFM sobre quais cirurgias referidas no Parecer CFM nº 1.459/1995 são usuais e quais são experimentais

Parecer CFM nº 1.622/2001 – considera a fotoablação corneana por “excimer laser” como procedimento oftalmológico usual. Revoga a Resolução nº 1.459/1995

Parecer CFM n 21/2003 – Dispensa a obrigação de termo de consentimento para lasik

Parecer CREMEB nº 05/2009 – Sobre indicação de cirurgia refrativa para trabalhador

Parecer CFM nº 8/2019 – uso de 1 gota/noite de colírio de atropina 0,01% em crianças

Parecer CREMESP nº 22.538/2017 -comprova a eficácia científica do uso oftalmológico do colírio de atropina 0,01% para controle da progressão da miopia em crianças

Resolução CFM nº 2.070/2014 – sobre normas para emissão de pareceres

Resolução CFM nº 1.335/1989 – sobre normas para emissão de pareceres

Resolução CFM nº 1.450/1995 – sobre normas para emissão de pareceres

Resolução CFM nº 1.769/2005 – sobre normas para emissão de pareceres

Resolução CFM nº 1.892/2009 – sobre normas para emissão de pareceres

Freidson, E. Profissão Médica. Um estudo de sociologia do conhecimento aplicado. 2008; Editota Unesp, 451p

Kaplan RM; Frosch DL Decisio making in medicine and health care Annu. Rev Clin Psychol 2005; 1:525-556

Kesarwani,SS; Mumbai Group of Paedriatric Ophthalmologists and strabismologists Indian Journal of Ophthalmology 2019; 67:461-3

Walline JJ, Lindsley KB, Vedula SS, Coter SA, Mutti DO, Ng SM, Twelker JD Interventions to slow progression of myopia in children (Review). Cochrane Database of Systematic Reviews 2020, Issue 1. Art. No.:CD 004916 DOI: 10.1002/14651858.CD004916.pub4.

Tratamento da Retinose Pigmentar em Cuba

“Nunca na história passada, o charlatanismo médico foi um atividade comercial tão efervescente como atualmente”  ….   “é um paradoxo: o  crescimento simultâneo da ciência médica moderna no século 20, ao lado do crescimento da falta de senso da pseudo-ciência médica”

JH Young – The Medical Messiahs
Retinose Pigmentar

Retinose pigmentar é um grupo heterogêneo de doenças oculares genéticas que  acometem a retina, causam cegueira noturna, redução do campo de visão e podem levar à cegueira. Ocorre em todo o mundo, atinge homens e mulheres, é uma doença crônica que apresenta evolução variável entre os pacientes. Não existe tratamento capaz de alterar o curso da doença.

Por se tratar de doença que não dispõe de tratamento com eficácia comprovada, diversos tratamentos ineficazes foram promovidos ao longo dos séculos e vendidos para obter lucro. Alguns desses tratamentos, quando divulgados, foram recebidos com entusiasmo e promoveram verdadeiras peregrinações de pacientes. Em todos os casos, acabaram descartados devido à sua ineficácia, falta de fundamento e ausência de trabalhos científicos que comprovassem os alegados resultados.

Tratamento da Retinose Pigmentar em Cuba

Na década de 1990  difundiu-se no Brasil e em outros países, notícia sobre a existência de um tratamento para a retinose pigmentar desenvolvido em Cuba. Apesar da ausência de evidências científicas, este tratamento secreto e milagroso, atraiu muitos portadores da doença, em busca de tratamento da doença genética para a qual a oftalmologia mundial nada podia oferecer.

O isolamento de Cuba devido ao regime político totalitário e a ideia de que a medicina estaria avançada nesse pequeno País, ajudou a revestir de mistério o alegado tratamento, como que justificando o desconhecimento do resto de mundo. A ausência de publicações em revistas internacionais fez com que oftalmologistas brasileiros, embora desconhecendo em que consistia o secreto tratamento, se manifestassem no sentido da inexistência de tratamentos eficazes para a doença, seja em Cuba ou em qualquer outra parte do mundo.

A estratégia cubana para tratamento da retinose pigmentar consistiu em tratamento combinado multi-terapêutico através de quatro procedimentos aplicados aos candidatos em busca da alegada cura. Envolvia 3 semanas de hospitalização com custo de aproximadamente 10.000 dólares. Recomendava-se repetição de alguns procedimentos a cada seis meses, a um custo aproximado de 4.000 dólares (Duquette, 2010).

Os quatro procedimentos do tratamento cubano consistiam em:

1) procedimento cirúrgico supostamdente fundamentado em teoria vascular, ou cirurgia revitalizadora temporal, de transposição autóloga, pediculada, de gordura retro-orbitária para o espaço supra-coroideo (Molina – vídeo);

2) Ozonioterapia, aplicada diariamente durante 15 dias, com o equipamento Ozomed, por via retal mediante a introdução de uma sonda fina através do anus(Aguiar & Baéz, 2009). Segundo Aguiar e col. (2015), a ozonoterapia também pode ser realizada através de 10 aplicações de auto-hemoterapia. Neste caso, retira-se 200 ml de sangue do paciente e submete-se o sangue coletado ao tratamento com ozônio, no próprio frasco de coleta e, em seguida, se administra o sangue na veia do paciente;

3) Eletroterapia ou eletroestimulação, aplicada nas regiões cervical e plantar dos pacientes com o equipamento EQ-1604, com voltagem fixa de corrente sinusoidal de baixa frequência por um período de 10 minutos, durante 10 dias;

4) Magnetismo diretamente na região ocular, com o equipamento Geo-200, durante 20 minutos, diariamente por 10 dias (Espinosa e col., 2010)

A ozonioterapia, a eletroterapia e o magnetismo, segundo os proponentes, são técnicas de medicina natural,  terapia eficaz para complementar a reabilitação visual.  Alegam que, além de inócuos, são baratos e seguros para diferentes doenças infecciosas, inflamatórias, circulatórias e degenerativas, com capacidade para destruir bactérias, vírus e fungos. Os efeitos desse tratamento seriam  passageiros, tornando necessário repetir as aplicações com frequência pré-determinada, segundo critérios personalizados para cada paciente (Aguiar & Baéz, 2009; Espinosa e col, 2010).

O tratamento cubano não encontrou respaldo na literatura mundial e não foram publicados trabalhos que confirmassem a sua eficácia. Duas revisões sobre o tema (Duquette, 2010; Fishman, 2013) concluíram que o tratamento não apresenta relação com as causas da doença, provoca danos em alguns pacientes, não há comprovação de que tenha efeito, carece de validade e não deve ser recomendado. Essas revisões evidenciaram riscos de diversas complicações como estrabismo e infecções e mesmo piora da visão, além de danos psicológicos relacionados à falsa esperança ou à decepção cruel, além da perda financeira.

A notícia deste tratamento difundiu-se no Brasil e muitos pacientes ajuizaram ações para obrigar o Estado a arcar com esse tratamento não disponível no Brasil. O judiciário brasileiro deu guarida a grande número de demandas e condenou o Estado a custear viagem e tratamento para muitos pacientes, em um dos exemplos de judicialização da saúde envolvendo pseudociência.

O tratamento cubano da retinose pigmentar causou enormes prejuízos ao sistema de saúde pública brasileiro, com o custeio da viagem e tratamento de muitos brasileiros portadores de retinose pigmentar, impostas por sentenças judiciais em primeira instância e mesmo no STJ. Em 2011, o STJ deu provimento à demanda de pacientes e impôs ao Ministério da Saúde a obrigação de pagar  viagem e tratamento da retinose pigmentar em Cuba. Na ocasião, um dos ministros favorável a impor ao Estado Brasileiro o onus de  viagens e tratamento em Cuba, argumentou: “pelo que leio nos veículos de comunicação, o tratamento dessa doença, com êxito, está realmente em Cuba”, enquanto outro ministro afirmava “Eu sou muito determinado nessa questão de esperança” (Notícias STF, 13/4/2011).

Tratamento da Retinose Pigmentar no Brasil – Décadas de 1980-1990

No Brasil, já tivemos o nosso equivalente ao tratamento cubano da retinose pigmentar fundamentada em pseudociência. Trata-se da injeção de “fator de transferência” obtido do sangue de doadores, que ficou conhecida como “vacina para paralisar a progressão da retinose pigmentar” (Amorim e col., 2005; Rocha, 1987; Gonçalves, 2011), desenvolvida no Instituto Hilton Rocha (IHR) e que esteve disponível apenas neste local, durante vários anos na década de 1980 e 1990. Houve verdadeira peregrinação de portadores de retinose pigmentar oriundos de diferentes regiões do Brasil, que afluíam a este Instituto que, nessa ocasião, detinha grande prestígio nacional, para serem tratados com essa “vacina”.

Poucas são as referências a este tratamento, mas pode-se encontrar na internet o relato esporádico de pacientes que dizem ter recebido este tratamento. Segundo relatos de pacientes (Isabele AA, 2010; Yolanda V, 2010), os pacientes eram atendidos no IHR, onde se indicava repetir todos os anos exame de campo visual manual, retinografia de contraste e um exame de sangue no laboratório do próprio IHR para medir os “antígenos da retina”. Após os resultados,  era feita a indicação do uso da vacina, que era aplicada 3 dias da semana por 4 semanas, repetindo-se o tratamento em intervalos de 6 meses. Os exames e o tratamento eram cobrados dos pacientes.

O Instituto Hilton Rocha deixou de funcionar há mais de uma década  e esse  tratamento era oferecido apenas nessa Instituição, a exemplo do tratamento oferecido apenas em Cuba. O tratamento vendido no IHR consistia na injeção de “vacinas com fator de transferência”  preparadas com  material extraído do sangue de doadores. Não foi possível comprovar a eficácia desse tratamento e não foram publicados estudos sobre resultados e complicações. O tratamento foi abandonado por não ter sido comprovada qualquer eficácia e devido ao risco de transmissão de doenças como hepatite e AIDS, transmitidas através do uso de material extraído do sangue de doadores.

Os tratamentos oferecidos em Cuba e no Instituto Hilton Rocha exemplificam a promoção e venda de produtos ou tratamentos sabidamente não eficazes ou que não foram adequadamente testados.

Evita-se a palavra charlatanismo ao se referir à divulgação sensacionalista de práticas de cura que carecem de fundamento científico ou a exploração da credulidade pública, induzindo pacientes a acreditarem em tratamentos cujos benefícios não estão comprovados. Referir-se a alguém como charlatão pode gerar acusação de crime de calúnia, caso este indivíduo não tenha sido condenado em devido processo judicial. Charlatanismo é  crime previsto no Código Penal: inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível ou exercer o curandeirismo é infração passível de pena de detenção, além de multa. Entretanto, para receber a alcunha de charlatão há que se submeter a demorado processo judicial e é muito raro que isso ocorra, mesmo na existência de provas contundentes.

Tratamentos para  retinose pigmentar são exemplos de uso de  pseudociência, supervisionada e oferecida por médicos de prestígio. O respaldo de autoridades é  uma das estratégias para legitimar procedimentos não aprovados pela medicina e exemplifica a obtenção de lucro com tratamentos ineficazes .

As modalidades de tratamento da retinose pigmentar, cubana ou brasileira, podem ser classificadas como práticas não convencionais de tratamento médico, medicina alternativa ou complementar e representam uma das facetas do pluralismo médico. Este grupo heterogêneo de práticas dirigidas ao tratamento ou cura de doenças coexiste com a medicina tradicional que procura fundamentar as suas práticas em evidências científicas. Entre as práticas de cura alternativa estão: cura através de cristais, galvanismo, magnetismo, cura através da dieta ou suplementos nutricionais, homeopatia, cura pela mente, medicina étnica e numerosos outras modalidades de abordagem à doença ou ao sofrimento humano.

O avanço do conhecimento científico e o surgimento de métodos de diagnóstico e tratamento reconhecidamente eficazes não reduziu a atração do ser humano pelas práticas alternativas de cura, não fundamentadas em evidencias científicas. Pelo contrário, observa-se crescimento do mercado ligado às diferentes modalidades de medicina alternativa ou complementar. Estudos sociológicos das práticas de cura evidenciam que sempre existiram diversas correntes de pensamento sobre as abordagens à doença e ao sofrimento humano.

Portadores de doenças crônicas, particularmente que tendem a evoluir desfavoravelmente, com o atendimento oferecido pela medicina tradicional são particularmente atraídos e vulneráveis a tratamentos ineficazes. Notícias sobre opções de tratamento que ainda não foram adequadamente testados, o sensacionalismo e o desejo de obter lucro fácil fazem com que seja impossível o controle de diferentes abordagens que atraem candidatos a utilizá-las. A alcunha pejorativa de charlatanismo foi substituída por termos como pseudociência ou como abordagens não ortodoxas de tratamento de doenças, pluralismo médico, medicina alternativa ou complementar.

Referências

1)Aguiar, LJP; Báez, OG Estrategia cubana para el tratamiento de la retinosis pigmentaria Revistas Médicas Cubanas, 2009; 22 (sup 2): 281-287 http://bvs.sld.cu/revistas/oft/vol22_sup02_09/oft16309.htm; 2) Aguiar, LJP; González, CR; Mora, MH; Castaño, AB; CID, AML Reacciones adversas de la ozonoterapia en pacientes con retinosis pigmentaria. Revista Cubana de Oftalmoloia 2015; vol. 28 (4)   http://scielo.sld.cu/pdf/oft/v28n4/oft05415.pdf; 3) Amorim, D.S; De-Maria-Moreira, NL; Mendonça, RX; De-Maria-Moreira, D; Herco, BVS Retinose Pigmentosa Grupo edit. Moreira Jr; 2005; http://www.moreirajr.com.br/revistas.asp?fase=r003&id_materia=3317 (consultado em 16/8/2016); 4) Berger, M. The era of enlightenment ends with the golden calf. Lexture given during the Skrabanek Foundation Colloquium “Medical Utopianism: A threat to helath”, London, 2002; 5) Beyerstein, BL Distinguishing science from pseudoscience. Revised, October 1996, Centre for Curriculum and Professional Development, Canada; 6) Duquette, J. Is the evidence supporting the Cuban treatment for retinitis pigmentosa? Institut Nazareth & Louis Braille, 2011 (Canada); 7) Espinosa, SMG; Luque, RF; Pérez, SRF; Salomón, MD; Mayet, IG Eficacia del uso de ozonoterapia, magnetismo e electroestimulación en pacientes con retinosis pigmentaria e glaucoma. Revistas Medicas Cubanas (Medisan) 2010; 14(4): 453-463 – http://bvs.sld.cu/revistas/san/vol_14_4_10/san06410.htm; 8) Fishman, G.A. A historical perspective on the early treatment of night blindness and the use of dubious and unproven treatment strategies for patients with retinitis pigmentosa. Survey of Ophthalmology 2013; 58: 652-663; 9) Gale, N The sociology of traditional, complementary and alternative medicine. Sociology Compass 2014:805-822; 10)Gambrill, E. PROPAGANDA in the helping professions. Oxford University Press, New York, 2012, 570p.; 11) Gonçalves, ER Retinose pigmentar:fantasias e realidade.; 12)  http://diariodeumaretinoseira.blogspot.com.br/2011/10/retinose-pigmentar-fantasias-e.html (consultado em 02/09/2016); 13) Isabele A.A. Retinose pigmentar. Relato pessoal. http://orkut.google.com/c476560-tbfb863d8499e78e4.html (consulado em 5/9/2016); 14) Kaptchuck, T.J.; Eisenberg, DM Varieties of healing, 1: Medical Pluralism in the United States. Ann Intern Med. 2001, 135:189-195; 15) Kaptchuck, T.J.; Eisenberg, DM Varieties of healing, 2: A Taxonomy of unconventional healing practices. Ann Intern Med. 2001, 135:196-204; 16) Kloetzel, K. O ABC do Chalatão Edições Mandaracu, São Paulo, 1988, 122p.; 17) Molina, OF      Tratamiento Quirurgico de la Retinosis Pigmentaria https://www.youtube.com/watch?v=uZyCELOyN0U (visualizado em 31/8/2016); 18) Notícias STF 13/4/2011 (consultado em 16/08/2016) http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=177147; 19) Conselho Federal de Medicina – Parecer CFM n 33/13; 20) Conselho Federal de Medicina – Resolução CFM n 1.982/2012; 21) Rocha, H Novas Perspectivas Imunológicas em Oftalmologia. Anais do XIX Congresso Brasileiro de Oftalmologia 3 a 10-9-77; Rio de Janeiro – Brasil ; p. 235-271 (Conferência Magistral); 22) Tamiozo, AN; Rocha, H; Gonçalves, ER; Antunes, LJ ERG e AgS em filhos de pacientes com retinose pigmentar. Arq. Bras. Oftalmol. 1987; 50:53-65; 23) Vieira, Y. Relato pessoa. Publicado em 23/04/2010. http://www.revistavigor.com.br/2009/10/02/retinose-pigmentar-celulas-tronco-para-recuperar-a-visao/ (consultado em 3/9/2016); 24) Young, JH The medical Messiahs, A social History of health quackery in twentieth-century America. Princeton University Press, Princeton, 1992 ; 498 p.; 25) Wikipedia List of withdrawn drugs. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_withdrawn_drugs (consultado em 14/8/2016); 26) http://www.portalmedico.org.br/jornal/jornais1999/0199/excelencia.htm (consultado em 31/8/2016) Retinose Pigmentar Elisabeto

Sociedades médicas de especialidades e suas relações com a Indústria

Conflitos de interesses permeiam as relações entre médicos, sociedades médicas de especialidades, instituições de ensino e pesquisa e as indústrias farmacêutica e de equipamentos médicos.

O interesse pelo estudo dessas relações que envolvem conflitos de interesse aumentou recentemente. Observa-se crescimento do número de publicações sobre o tema a partir de 2000, com tendência à condenação deste relacionamento e recomendações no sentido de limitá-lo.

No Brasil, o código de ética médica de 2009 aborda a questão. Os artigos 20, 104, 109 e 116 determinam que é vedado ao médico participar de anúncios de empresas comerciais, qualquer que seja sua natureza; deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa ou satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais. O médico deve, também, declarar relações com indústrias que possam configurar conflito de interesse, ainda que potencial 5 .

A ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária publicou em 12/2008 resolução que dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos. Esta resolução mostra-se sintonizada com as idéias sobre o assunto recentemente publicadas na literatura médica. O art. 7°-V proibe, na propaganda ou publicidade de medicamentos, incluir marcas nominativas, figurativas ou mistas de associações e/ou sociedades médicas, associações que representem os interesses dos consumidores ou dos profissionais de saúde e/ou selos de certificação de qualidade. O item VIII veda fazer propaganda ou publicidade de medicamentos e/ou empresas em qualquer parte do bloco de receituários médicos 1 .

A oftalmologia brasileira mantém-se relativamente alheia à influência da indústria no Conselho Brasileiro de Oftalmologia e nas diversas sociedades de áreas específicas da oftalmologia. A seguir apresenta-se dois exemplos.

O Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), órgão máximo da oftalmologia brasileira, mantém vínculos estreitos com a indústria de medicamentos, equipamentos e lentes, que financiam muitas de suas atividades. O CBO é uma sociedade civil sem fins lucrativos constituída em 1941. O CBO é o departamento de oftalmologia da Associação Médica Brasileira (AMB), e funciona como uma associação científica e cultural de médicos oftalmologistas que defende os interesses da oftalmologia, fiscaliza, concede títulos de especialista, promove congressos, etc. Edita os Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, revista de elevado prestígio científico. Várias sociedades oftalmológicas são filiadas ao CBO, podendo-se citar a Sociedade Brasileira de Catarata e Implantes Intra-oculares, Sociedade Brasileira de Cirurgia Refrativa, Sociedade Brasileira de Glaucoma, Sociedade Brasileira de Retina e Vítreo, entre outra

Na página da internet do CBO, assim como em material distribuído aos oftalmologistas do Brasil, como nos Relatórios de Gestão, a cada biênio, calendários, etc, a logomarca do CBO aparece ao lado da logomarca dos principais financiadores que, carinhosamente, são chamados de patronos (patrono = defensor, protetor, que financia; na Roma antiga, pessoa livre a quem estavam vinculados escravos – Houaiss  8).

No  “Relatório de Gestão 2007-2009” do CBO,onde são relatadas as atividades do biênio como “programas de formação e educação continuada“, “congressos“, “comunicação“, “projeção internacional“, “interface com poderes públicos“, “interface com empresas e entidades6 , páginas inteiras  estão dedicadas à promoção de algumas indústrias farmacêuticas, fabricantes de equipamentos, lentes de óculos e lentes de contato. O avental com o emblema do CBO é apresentado com a incorporação das logomarcas destes “patronos” (Figura 1). O relatório não presenta nenhuma informação sobre quantias recebidas pelo CBO desses “patronos”, assim como informações sobre outras formas de patrocínio, jantares, passagens, diárias de hotéis, inscrições em congressos, brindes, etc, oferecidos a funcionários ou membros da administração do CBO.

cbo1 - sociedades médicas

Figura 1 : Destaque do avental do CBO apresentado nas páginas 10 e 47 do relatório de gestão 2007-2009. (turvação da logomarca dos patronos foi realizada por nós, na imagem).

Outro exemplo refere-se a atividades promovidas pela Sociedade Brasileira de Glaucoma . O 3º Consenso Brasileiro sobre Glaucoma Primário de Ângulo Aberto, realizado em 2009,  reuniu 69 relatores convidados e deu origem a uma publicação 20. Nesta publicação consta o patrocínio de determinado laboratório que produz colírios usados para tratamento do glaucoma e consta agradecimento a este laboratório,  que assegurou os recursos logísticos necessários para que fossem reunidos em São Paulo “glaumatólogos de todos os principais quadrantes do país”. Destaca-se o fato de que não são informados quaisquer conflitos de interesse seja por participantes, seja pela própria Sociedade Médica.

Juramento dos médicos e das indústrias

Médicos assumem o compromisso de agirem na defesa dos melhores interesses dos pacientes, assim como da sociedade como um todo. O exercício da medicina é essencialmente uma atividade social. As associações médicas de especialidades ou associações médicas em geral, devem ser construídas em fundamentos éticos adequados baseados nessas mesmas premissas 9,13 .

As indústrias farmacêutica e de equipamentos ou produtos ligados à atividade profissional do médico possuem o compromisso de maximizar o capital e gerar lucro para seus acionistas. As indústrias não estão obrigadas moralmente a agirem no maior interesse dos pacientes ou coletivamente no melhor interesse da sociedade 9 .

A existência de um conflito de interesses entre a atividade médica e as indústrias é ínerente aos seus diferentes objetivos.

Brindes, presentes, motivações

A indústria farmacêutica dedica esforço considerável para criar um ambiente de relacionamento desde o início, com os médicos jovens durante a residência médica. Presentes, brindes, jantares, inscrições em simpósios e congressos são recebidos pelos residentes como um reconhecimento pelo sacrifício em horas de estudo e trabalho. O propagandista se coloca como um “amigo” do residente disposto a ajudá-lo e a transmitir informações e trazer novidades. A indústria desenvolve um relacionamento estreito com os médicos que prescrevem seus produtos e o resultado deste trabalho é verificado em pesquisas de prescrição realizadas junto às farmácias 3 .

A disponibilidade de amostras-grátis é um forte indutor para médicos prescreverem e pacientes utilizarem medicamentos mais caros, mas não necessariamente mais eficazes 2.

As motivações individuais de médicos frente ao relacionamento com a indústria são bem conhecidas: 1) titulação, por convites e participações em cursos, congressos, grupos de consenso; 2) reconhecimento ou satisfação pessoal de ser considerado uma autoridade em uma área do conhecimento; 3) sensação de pertencer a um grupo seleto de profissionais prestigiados; 4) dinheiro ou outros benefícios. Do lado das indústrias, os bilhões de dólares investidos anualmente neste relacionamento apresentam um retorno que é monitorado e serve de motivação para manter e zelar pela sua perpetuação 12 . Em 2006 estima-se que entre 27,7 e 57,5 bilhões de dólares foram gastos com a promoção de medicamentos junto aos médicos 14 .

A declaração de possíveis conflitos de interesses por parte do médico, seja frente ao paciente, seja em trabalhos científicos, apresentações ou palestras, tem sido questionada quanto à sua eficácia. A possível ineficácia da declaração de conflito de interesses decorre de: 1) indivíduos diferem naquilo que consideram como fonte potencial de conflito de interesse; 2) As declarações de interesses conflitantes geralmente não são passíveis de verificação; 3) há uma falta de clareza relacionada ao objetivo final da declaração; 4) não há dados sistemáticos mostrando como os indivíduos processam as informações, sejam aqueles que declaram a existência de conflito de interesse ou os que recebem a informação; 5) as declarações de conflito podem ser usados para “higienizar” uma situação problemática, sugerindo que a declaração da existência de conflito soluciona a questão e o indivíduo pode agir como se nada existisse; 6) estudos de comportamento humano mostram que os motivos individuais geralmente são inconscientes e que o comportamento frequentemente desvia-se do que seria considerado racional 2,19 .

Apesar de médicos compreenderem o conceito de conflito de interesses, existe uma tendência ao desenvolvimento de mecanismos psicológicos de racionalização e reinterpretação dos dados, ou dissonância cognitiva, que limita a eficácia de recomendações ou códigos de conduta externos ou auto-impostos. Provavelmente apenas a proibição de interações entre médicos e propagandistas, assim como a eliminação de brindes e amostras-grátis possa ser eficaz para reduzir a influência da indústria sobre o receituário médico 3,4 .

Propostas para limitar a influência da indústria sobre o médico

Devido à dificuldade de se mensurar a interferência dos brindes e outros favores sobre o comportamento do médico 11, devido à sua finalidade precípua de influenciar o receituário do médico e devido a eficácia duvidosa da declaração de conflito de interesses, foram propostas as seguintes políticas a serem adotadas por sociedades médicas de qualquer natureza e centros médicos acadêmicos, com relação às interações com as indústrias que atuam na área da saúde 2,15,10 :

1 – Brindes, presentes, refeições, passagens, etc – banimento completo.

2 – Amostras de medicamentos – proibição total, passível de ser substituída por vouchers para pacientes de baixa renda.

3 – Elaboração de listas de medicamentos padronizados – nenhum médico que recebe brindes, financiamentos, mantém relacionamento com laboratórios pode participar de comissões que decidem listas de medicamentos padronizados de instituições.

4 – Educação médica continuada – indústrias não podem dar suporte financeiro direto a nenhum programa específico. As contribuições devem ser doadas à instituição que, por sua vez, direciona a programas aprovados por comissões internas.

5 – Fundos para viagens de médicos – As contribuições devem ser doadas à instituição que, por sua vez, decide como utilizá-los.

6 – Contratos de pesquisa ou consultoria – pagamentos para consultoria ou palestras devem ser feitos apenas quando existir um contrato específico entre a indústria e o médico ou pesquisador; contratos sem objetivo claramente identificável devem ser considerados como brindes. Palestrantes pagos ou financiados por laboratórios devem ser considerados como uma extensão do aparelho de marketing das indústrias.

7 – Associações de especialidades não devem fazer acordos ou negociações que envolvam o uso do nome da organização em seu marketing de bens ou serviços 13 .

8 – Nenhuma logomarca de indústrias deve aparecer em pastas, sacolas, canetas ou outros brindes, assim como em publicações distribuídas para membros da sociedade que comparecem a encontros científicos 15.

9 – Prêmios e bolsas de estudos não devem receber o nome do laboratório ou indústria patrocinadora 15.

10 – Adotar transparência das contas relacionadas a patrocínios, inclusive disponibilizá-las no website: compra de espaços em áreas de exposição de congressos, compra de espaço publicitário em revistas editadas pelas associações, doações de qualquer natureza, financiamentos, passagens, diárias de hotéis, jantares, programas de ensino, patrocínio de reuniões para estabelecimento de consensos, etc 13 .

A adoção destas medidas envolve um período de ajustes, mudanças no modo de operação e mesmo redução de recursos disponíveis para atividades de inquestionável valor. Acredita-se, entretanto, que trarão benefícios para os pacientes e para a sociedade com um todo.

Os critérios para estabelecimento de consensos e recomendações de “melhores práticas” necessita ser modificado. Existem evidências de que, em diversos casos, esses consensos não estão direcionados para os melhores interesses dos pacientes e sim para interesses daqueles que lucram com as práticas recomendadas, devido a influência de financiadores ou à proximidade de indústrias 2,17 .

Há que se cuidar para que recomendações ou normas de conduta que tenham por objetivo restringir a influência da indústria no receituário médico e nas atividades das sociedades médicas, não se prestem a ajudar a legitimar e mesmo criar uma proteção jurídica para a indústria, ao invés de cumprir o seu papel precípuo 14.

Opiniões dissidentes

Encontra-se na literatura pontos de vista dissidentes com relação às recomendações de fortes restrições aos contatos com a indústria apresentados acima.

Stell 17 critica as regras moralistas e draconianas propostas, particularmente no que se refere à proibição de acesso a campus universitários e hospitais de ensino, de propagandistas e conferencistas ligados a laboratórios 2. Chama a atenção para o fato de que a medicina é uma arte-que-utiliza-a-ciência e que as demonstrações de novos produtos desenvolvidos pela indústria promove familiaridade, aquisição de habilidades técnicas, bons resultados, benefício para os pacientes, lealdade a marcas. Competição, busca de prestígio, dedicação, brilhantismo, técnicas engenhosas com ganhos evidentes para todos, não necessariamente são dominados pelo dinheiro. Os médicos deveriam manter postura crítica com relação ao material de divulgação que recebem e demandar por material de boa qualidade. Formas de parcerias com a indústria farmacêutica que possam trazer mais benefícios do que malefícios devem ser buscadas 7,16 .

Conclusão

Associações médicas em geral, incluindo aquelas de especialidades, são entidades civis que não se encontram sob o poder fiscalizador direto dos CRMs ou do CFM. Entretanto estas associações devem agir em consonância com os princípios que regem a profissão médica. Neste sentido devem os nossos conselhos, assim como a ANVISA, se debruçar sobre os conflitos de interesses que permeiam as relações entre médicos e sociedades médicas com as indústrias farmacêutica e de equipamentos, impondo limites e orientando. Devem ser banidas práticas que colocam em dúvida a integridade da profissão ou a defesa dos interesses dos pacientes e da sociedade como um todo. Urge que tiremos o atraso de vários anos e que códigos de conduta, normas e regras rígidas de transparência sejam estendidos a instituições de ensino e pesquisa, hospitais, residências médicas e associações médicas de qualquer natureza, assim como aos grupos que promulgam consensos de “melhores práticas baseadas em evidências”.

Referências
1- ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária Resolução – RDC n° 96 de 17 de dezembro de 2008 www.anvisa.gov.br
2- Brennan, T.A.; Rothman, D.J.; Blank, L.; Blumenthal, D.; Chimonas, S.C.; Cohen, J.J.; Goldman, J.; Kassirer, J.P.; Kimball, H.; Naughton, J.; Smelser, N. Health industry practices that create conflicts of interest. A policy proposal for academic medical centers. JAMA 2006; 295: 429-433
3- Brody, H. Pens and other pharmaceutical industry gifts Am. J. Bioethics 2003; 3: 58-60
4- Chimonas, S; Brennan, T.A.; Rothman, D.J. Physicians and drug representatives: exploring the dynamics of the relationship. Soc. Gen. Int. Medicine 2007; 22:184-190
5- Código de Ética Médica – Resolução CFM n° 1931/2009 (Publicada no D.O.U. de 24/12/2009, seção I, p. 90) – disponível em www.portalmedico.org.br
6- Conselho Brasileiro de Oftalmologia – Relatório de gestão 2007-2009 www.cbo.com.br
7- DeMaria, A. N. Your soul for a pen? J. Am. Coll. Card. 2007; 49:1220-1222
8- Dicionário Houaiss da lígua Portuguesa Edit. Objetiva, Rio de Jaeiro, 2001
9- Jampol, L.M.; Packer, S.; Mills, R.P.; Day, S.H.; Lichter, P.R. A perspective on comercial relationships between ophthalmology and industry. Arch. Ophthalmol 2009; 127:1194-1202
10- Kassirer, J.P. Professional societies and industry support. What is the quid pro quo? Perpespectives in Biology and Medicine 2007; 50:7-17
11- Katz, D.; Caplan, A.L.; Merz, J.F. All gifts large and small. Am. J. Bioethics 2003; 3: 39-46
12- Lichter, P.R. Debunking myths in physician-industry conflicts of interest. Am. J. Ophthalmol 2008; 146: 159-171
13- Pellegrino, E.D.; Relman, A.S. Professional medical associations. Ethical and practical guidelines. JAMA 1999; 282: 984-986
14- Podolsky, S.H.; Greene. J.A. A historical perspective of pharmaceutical promotion and physician education. JAMA 2008; 300: 831-833
15- Rothman, D.J.; McDonald, W.J.; Berkowitz, C.D.; Chimonas, S.C.; DeAngelis, C.D.; Hale, R.W.; Nissen, S.E.; Osborn, J.E.; Scully Jr., J.H.; Thomson, G.E.; Wofsy, D. Professional Medical Associations and their relationships with industry. A proposal for controlling conflict of interest. JAMA 2009; 301:1367-1372
16- Sade, R.M. Dangerous liasions? Industry relations with health professionals (introduction) Journal of law, medicine & ethics 2009; 37(3): 398-400
17- Stell, L.K. Drug reps off campus! Promoting professional purity by suppressing commercial speech. Journal of law, medicine & ethics 2009; 37(3): 431-443
18- Sniderman, A.D.; Furberg, C.D. Why guideline-making requires reform. JAMA 2009; 30:429-431
19- Weinfurt, K.P.; Friedman, J.Y.; Dinan, M.A.; Allsbrook, J.S.; Hall, M.A.; Dhillon, J. K.; Sugarman, J. Disclosing conflicts of interest in clinical research: Views of institucional review boards, conflict of interest committees, and investigators. Journal of law, medicine & ethics 2009; 37(3): 581-591
20 – Sociedade Brasileira de Glaucoma. 3º Consenso Brasileiro Glaucoma Primário de Ângulo Aberto (Editor : Augusto Paranhos Jr.) ; São Paulo; BestPoint, 2009

Excessos da medicina e como preveni-los

A medicina assistiu a um grande avanço na prevenção de doenças. Quatro níveis de prevenção são identificados.

A prevenção primária consiste em um conjunto de medidas dirigidas a determinada doença ou grupo de doenças, com o objetivo de interceptar as causas, antes que o ser humano seja atingido pela enfermidade. O exemplo clássico é o uso de vacinas.

A prevenção secundária consiste em um conjunto de medidas cujo objetivo é a identificação precoce da doença ou de fatores que supostamente favorecem o seu aparecimento e a adoção de medidas para minimizar suas consequências. Atualmente, a atividade médica está repleta de exames e atitudes baseadas na prevenção secundária e identificação dos chamados fatores de risco. Podem ser citadas a medida da pressão intraocular e a dosagem de PSA.

A prevenção terciária tem seu foco dirigido ao tratamento da doença, reduzindo suas complicações e reabilitando o paciente. A prevenção terciária se confunde com a atuação tradicional do médico.

A prevenção quaternária teve seu conceito introduzido há pouco mais de dez anos. Consiste em um conjunto de ações ou atitudes cujo objetivo é identificar o paciente sob risco de ser submetido a exames, intervenções ou tratamentos  médicos desnecessários. Em suma, o objetivo da prevenção quaternária é proteger o paciente dos excessos da medicina, das atitudes preventivas inapropriadas, do tratamento excessivo, da iatrogenia.

Inúmeros exames e procedimentos novos foram introduzidos nos últimos anos. Esses exames permitiram diagnósticos mais precisos e, frequentemente, mais precoces. Em alguns casos, entretanto, exames sofisticados fornecem informações cujo valor real para o paciente ainda não está bem esclarecido.

Na verdade, a ênfase na identificação de fatores de risco para algumas doenças e a introdução de tratamentos precoces nem sempre estão acompanhadas de estudos científicos bem controlados que comprovem o seu valor para os pacientes. Exames e tratamentos de custo elevado são incentivados pela indústria farmacêutica ou de equipamentos, que influenciam os médicos através de visitas em seus consultórios, com incentivos como: amostras, brindes, pagamentos de viagens e inscrições em congressos, presença ostensiva em congressos e patrocínio de sociedades médicas.

Na oftalmologia, chama a atenção o excesso de exames complementares realizados em pacientes classificados como “suspeitos” de glaucoma, de doenças da mácula, de doenças da córnea etc. Podem ser citados: tomografia de coerência óptica, ceratoscopia computadorizada, microscopia especular da córnea, paquimetria e outros. Esses exames podem ser muito importantes para esclarecer diagnósticos e para controle de tratamento ou evolução de doenças. O problema é que passaram a ser solicitados  em situações nas quais não são indispensáveis e têm sido repetidos periodicamente sem necessidade.

O excesso de exames complementares desnecessários tem algumas causas bem conhecidas. Podem ser citadas: o tempo reduzido que o médico dedica ao exame do paciente, que é substituído pelo resultado dos exames solicitados; padronização de um conjunto de exames complementares para todos pacientes com tal ou qual problema, os chamados “protocolos”; e, ainda, os conflitos de interesse. Estes estão presentes quando os interesses do médico ligados à realização de tratamentos ou exames complementares não estão alinhados aos melhores interesses dos pacientes, por exemplo, quando os interesses do médico ligados à remuneração influenciam o seu julgamento. Todos esses fatores são potencializados pelas características da atividade médica ligada a planos de saúde: vínculos frágeis na relação médico-paciente, tempo disponível ao paciente reduzido, baixa remuneração oferecida ao médico, pagamentos adicionais individualizados por cada exame complementar.

Tratamentos crônicos, de custo mensal elevado e efeitos colaterais significativos são indicados em pacientes “suspeitos de glaucoma”, ou seja, que não são portadores da doença e talvez nunca viriam a ser. Cirurgias de catarata são realizadas em pacientes que não são portadores de catarata; anéis intracorneanos são indicados e colocados em pacientes com ceratocone, que poderiam simplesmente usar óculos ou lentes de contato.

Naturalmente o custo para a sociedade de tantos exames, intervenções e tratamentos que poderiam ser evitados é enorme. Quais atitudes estão à disposição dos pacientes e dos médicos para reduzir os riscos dos excessos da medicina?

Do médico, espera-se que exerça a medicina priorizando os interesses do paciente; disponibilize ao paciente o intervalo de tempo adequado para escutá-lo, examiná-lo, orientá-lo e dar os esclarecimentos que forem solicitados; suas ações sejam fundamentadas nas melhores evidências científicas disponíveis; mantenha presente a consciência de que os recursos para a saúde são limitados e devem ser utilizados criteriosamente, sejam eles provenientes dos pacientes, planos de saúde ou SUS; tratamentos ou exames complementares de utilidade duvidosa representam uma agressão psicológica e podem causar efeitos colaterais; estabelecer uma boa relação médico-paciente é fundamental para a obtenção de bons resultados e para a segurança do seu trabalho.

Ao paciente cabe adotar as recomendações que recebe do médico, apenas após solicitar todas as informações que julgar necessárias sobre a necessidade e custo dos procedimentos indicados, assim como os principais riscos caso opte por seguir as recomendações. É a chamada decisão compartilhada  entre médico e paciente. O paciente pode, ainda, buscar uma segunda opinião caso não se sinta seguro ou completamente esclarecido em suas dúvidas, particularmente frente à recomendação de uso crônico de medicamentos, indicação de procedimentos cirúrgicos, exames complementares de custo elevado ou alta complexidade. A segunda opinião é um direito do paciente previsto no código de ética médica e pode ajudá-lo em suas decisões relacionadas às recomendações que recebeu do primeiro médico.