Cross-linking em ceratocone
Há poucos dias foi publicada uma revisão referente às evidências sobre a eficácia do cross-linking (CXL) com riboflavina e radiação ultravioleta (UVA) para reduzir ou interromper a progressão do ceratocone em seus estágios iniciais. Esta revisão faz parte das revisões sistemáticas promovidas pela base de dados Cochrane (Cochrane Database of Systematic Reviews, Issue 4, 2015).
O ceratocone geralmente se manifesta entre 10 e 20 anos de idade. Não há predileção por sexo e a doença está associada ao hábito de esfregar ou coçar os olhos vigorosamente. Alergias oculares, atopias e o hábito de coçar os olhos são considerados fatores predisponentes. Apesar de numerosos estudos, o processo bioquímico subjacente e a etiologia precisa do ceratocone não são bem compreendidos. A doença pode apresentar progressão, provocar piora da visão e prejudicar a qualidade de vida dos portadores.
A orientação mais importante a ser dada ao paciente com ceratocone é interromper o hábito de coçar, esfregar ou apertar os olhos. A correção visual se faz com óculos ou lentes de contato e em casos raros pode ser necessário transplante de córnea. Entre outras opções de tratamento que são oferecidas por alguns oftalmologistas, mas não são adotadas pela maioria dos profissionais, estão a cirurgia de colocação de anéis intra-corneanos e o cross-linking de córnea.
O tratamento com cross-linking de colágeno (CXL) foi introduzido há pouco mais de 10 anos, em 2003. A técnica pode variar, assim como os equipamentos usados, mas geralmente remove-se o epitélio da área central da córnea, trata-se a superfície com uma solução de riboflavina 0,1% e irradia-se a córnea com UVA de 370 nm de comprimento de onda, durante 30 minutos.
A ideia na qual se fundamenta este tratamento é que ele seria capaz de aumentar a rigidez e aumentar a estabilidade da córnea. Este é o único tratamento que alega interromper a progressão do ceratocone. ENTRETANTO, é um tratamento recente, que foi introduzido sem que tivessem sido realizados estudos bem planejados para verificar qual o paciente ideal que poderia se beneficiar do tratamento, indicações e contraindicações, assim como sua segurança e eficácia a longo prazo.
A revisão Cochrane sobre cross-linking no ceratocone, incluiu a análise de 482 referências; 431 destas referências foram descartadas como sendo pouco relevantes aos objetivos da revisão. Foram incluídos estudos conduzidos na Austrália, Reino Unido e Estados Unidos, nos quais foram analisados um total de 219 olhos.
O tratamento pode estar associado a diversas complicações como edema difuso da córnea, opacidades no estroma, infiltrados para-centrais, vascularização periférica da córnea, erosão recorrente da córnea, ceratite infecciosa, falência endotelial, uveíte. Em outro texto apresentaremos as principais complicações relatadas em olhos submetidos ao CXL para o ceratocone.
A conclusão dos autores da revisão é que não existem evidências de que o cross-linking da córnea (CXL) seja, de fato, um tratamento eficaz para interromper a progressão do ceratocone.
Há necessidade de estudos de melhor qualidade, antes que se possa realizar uma avaliação adequada para confirmar a importância desta modalidade de tratamento.
Referência:
Evripidis, S; Rushmia, K; Jennifer R, E; Catey, B; Kwesi N, A-A; Showrob, P; Peter J, M; Samer, H Corneal Collagen Cross-linking for treating keratoconus. The Cochrane Library, Issue 4, 2015, Art. No. CD010621. DOI: 10.1002/14651858.CD010621.pub3
Ao longo dos anos de trabalho como oftalmologista, ao atender pacientes nos quais identificamos a existência de ceratocone, solicitamos que mostrassem a forma de coçar os olhos.
Identificamos que, na absoluta maioria dos casos, os pacientes relatam hábito de esfregar ou coçar os olhos apertando ou massageando-os com força.
Solicitamos a alguns pacientes a permissão para fotografá-los enquanto demonstravam a forma de coçar os olhos. A seguir, algumas fotos demonstrando os padrões que identificamos como repetitivos entre os portadores de ceratocone.
O conceito de que coçar os olhos é fator de risco para o aparecimento e progressão do ceratocone é hoje aceito universalmente.
Nossa opinião é que coçar, apertar, esfregar os olhos, constitui o principal fator de risco e é também fator causal relacionado ao aparecimento e progressão do ceratocone.
O ceratocone é uma doença bastante comum. Consideramos que todas as pessoas deveriam ser orientadas a evitar massagear, esfregar ou cocçar os olhos, em todas as circunstâncias. Esta orientação é particularmente importante em crianças e jovens, já que o ceratocone se manifesta geralmente nesta faixa de idade.
Destaque-se que coçar os olhos pode estar relacionado à progressão de alguns casos de miopia e astigmatismo, que podem ser manifestações iniciais do ceratocone. Além disso, esfregar os olhos pode causar flacidez palpebral e é fator de risco para o desenvolvimento da síndrome de frouxidão palpebral (“floppy eyelid syndrome”).
O ceratocone ou deformação cônica da córnea é frequente.
Ceratocone
O ceratocone causa redução da visão devido ao desenvolvimento de miopia e astigmatismo elevados. Nos casos moderados e avançados da doença, não se consegue obter uma boa acuidade visual com óculos, sendo necessário o uso de lentes de contato rígidas para melhorar a visão. Em uma minoria dos casos, pode ser necessário o transplante de córnea.
Em textos antigos e mesmo em alguns recentes, o ceratocone é apresentado como doença rara que se manifesta em 1 em cada 25.000 pacientes ou mesmo em 1 em cada 250.000 pacientes (Gorska&Sevost’ianov, 1998). Diferentes estudos mostram grande variação da prevalência da doença. Entre outros fatores, estas diferenças decorrem do critério adotado para o diagnóstico do ceratocone.
Há algumas décadas, ficaram disponíveis equipamentos para análise da topografia da córnea que permitiram a identificação do ceratocone em estágios iniciais, muitas vezes antes de prejudicarem a visão ou mesmo em pacientes com miopia e astigmatismo baixos ou moderados e visão normal com óculos.
Estudos recentes na Índia, Iran e Israel mostram que a prevalência do ceratocone varia em torno de 2,3% (Índia e Israel) a 3,3% (Iran). Estes estudos mostram que o ceratocone é uma doença frequente (Gokhale, 2013; Millodot e col, 2001; Hashemi e col, 2013).
Em nosso consultório, temos observado ao longo dos anos que o ceratocone é bastante comum entre os pacientes que atendemos.
Um dos importantes fatores relacionados ao aparecimento e progressão do ceratocone é o hábito de coçar, esfregar e apertar os olhos (http://yw.med.br/cocar-os-olhos-e-prejudicial/).
Fomos pioneiros no Brasil, na identificação da associação do ceratocone com o hábito de apertar os olhos e publicamos dois artigos sobre o assunto em 1989 e 1990 ( Waisberg Y, Katina JH. Ceratocone associado à cegueira congênita e compressão digito-ocular. Arq Bras Oftalmol. 1989;52(1):28-30 e Waisberg Y, Guarino MA, Santos UR O hábito de coçar os olhos em pacientes com ceratocone. Rev. Bras. Oftalmol. 1990; 49(6):8-14).
Em uma série de textos discutiremos questões relacionadas ao ceratocone, como: causa e prevenção, uso de lentes de contato e óculos, cross-linking, anel intra-corneano, associação com outras doenças etc.
A medicina assistiu a um grande avanço na prevenção de doenças. Quatro níveis de prevenção são identificados.
A prevenção primária consiste em um conjunto de medidas dirigidas a determinada doença ou grupo de doenças, com o objetivo de interceptar as causas, antes que o ser humano seja atingido pela enfermidade. O exemplo clássico é o uso de vacinas.
A prevenção secundária consiste em um conjunto de medidas cujo objetivo é a identificação precoce da doença ou de fatores que supostamente favorecem o seu aparecimento e a adoção de medidas para minimizar suas consequências. Atualmente, a atividade médica está repleta de exames e atitudes baseadas na prevenção secundária e identificação dos chamados fatores de risco. Podem ser citadas a medida da pressão intraocular e a dosagem de PSA.
A prevenção terciária tem seu foco dirigido ao tratamento da doença, reduzindo suas complicações e reabilitando o paciente. A prevenção terciária se confunde com a atuação tradicional do médico.
A prevenção quaternária teve seu conceito introduzido há pouco mais de dez anos. Consiste em um conjunto de ações ou atitudes cujo objetivo é identificar o paciente sob risco de ser submetido a exames, intervenções ou tratamentos médicos desnecessários. Em suma, o objetivo da prevenção quaternária é proteger o paciente dos excessos da medicina, das atitudes preventivas inapropriadas, do tratamento excessivo, da iatrogenia.
Inúmeros exames e procedimentos novos foram introduzidos nos últimos anos. Esses exames permitiram diagnósticos mais precisos e, frequentemente, mais precoces. Em alguns casos, entretanto, exames sofisticados fornecem informações cujo valor real para o paciente ainda não está bem esclarecido.
Na verdade, a ênfase na identificação de fatores de risco para algumas doenças e a introdução de tratamentos precoces nem sempre estão acompanhadas de estudos científicos bem controlados que comprovem o seu valor para os pacientes. Exames e tratamentos de custo elevado são incentivados pela indústria farmacêutica ou de equipamentos, que influenciam os médicos através de visitas em seus consultórios, com incentivos como: amostras, brindes, pagamentos de viagens e inscrições em congressos, presença ostensiva em congressos e patrocínio de sociedades médicas.
Na oftalmologia, chama a atenção o excesso de exames complementares realizados em pacientes classificados como “suspeitos” de glaucoma, de doenças da mácula, de doenças da córnea etc. Podem ser citados: tomografia de coerência óptica, ceratoscopia computadorizada, microscopia especular da córnea, paquimetria e outros. Esses exames podem ser muito importantes para esclarecer diagnósticos e para controle de tratamento ou evolução de doenças. O problema é que passaram a ser solicitados em situações nas quais não são indispensáveis e têm sido repetidos periodicamente sem necessidade.
O excesso de exames complementares desnecessários tem algumas causas bem conhecidas. Podem ser citadas: o tempo reduzido que o médico dedica ao exame do paciente, que é substituído pelo resultado dos exames solicitados; padronização de um conjunto de exames complementares para todos pacientes com tal ou qual problema, os chamados “protocolos”; e, ainda, os conflitos de interesse. Estes estão presentes quando os interesses do médico ligados à realização de tratamentos ou exames complementares não estão alinhados aos melhores interesses dos pacientes, por exemplo, quando os interesses do médico ligados à remuneração influenciam o seu julgamento. Todos esses fatores são potencializados pelas características da atividade médica ligada a planos de saúde: vínculos frágeis na relação médico-paciente, tempo disponível ao paciente reduzido, baixa remuneração oferecida ao médico, pagamentos adicionais individualizados por cada exame complementar.
Tratamentos crônicos, de custo mensal elevado e efeitos colaterais significativos são indicados em pacientes “suspeitos de glaucoma”, ou seja, que não são portadores da doença e talvez nunca viriam a ser. Cirurgias de catarata são realizadas em pacientes que não são portadores de catarata; anéis intracorneanos são indicados e colocados em pacientes com ceratocone, que poderiam simplesmente usar óculos ou lentes de contato.
Naturalmente o custo para a sociedade de tantos exames, intervenções e tratamentos que poderiam ser evitados é enorme. Quais atitudes estão à disposição dos pacientes e dos médicos para reduzir os riscos dos excessos da medicina?
Do médico, espera-se que exerça a medicina priorizando os interesses do paciente; disponibilize ao paciente o intervalo de tempo adequado para escutá-lo, examiná-lo, orientá-lo e dar os esclarecimentos que forem solicitados; suas ações sejam fundamentadas nas melhores evidências científicas disponíveis; mantenha presente a consciência de que os recursos para a saúde são limitados e devem ser utilizados criteriosamente, sejam eles provenientes dos pacientes, planos de saúde ou SUS; tratamentos ou exames complementares de utilidade duvidosa representam uma agressão psicológica e podem causar efeitos colaterais; estabelecer uma boa relação médico-paciente é fundamental para a obtenção de bons resultados e para a segurança do seu trabalho.
Ao paciente cabe adotar as recomendações que recebe do médico, apenas após solicitar todas as informações que julgar necessárias sobre a necessidade e custo dos procedimentos indicados, assim como os principais riscos caso opte por seguir as recomendações. É a chamada decisão compartilhada entre médico e paciente. O paciente pode, ainda, buscar uma segunda opinião caso não se sinta seguro ou completamente esclarecido em suas dúvidas, particularmente frente à recomendação de uso crônico de medicamentos, indicação de procedimentos cirúrgicos, exames complementares de custo elevado ou alta complexidade. A segunda opinião é um direito do paciente previsto no código de ética médica e pode ajudá-lo em suas decisões relacionadas às recomendações que recebeu do primeiro médico.