Artigos . Diversos . Revisões

Sociedades médicas de especialidades e suas relações com a Indústria

27 abril 2015

Conflitos de interesses permeiam as relações entre médicos, sociedades médicas de especialidades, instituições de ensino e pesquisa e as indústrias farmacêutica e de equipamentos médicos.

O interesse pelo estudo dessas relações que envolvem conflitos de interesse aumentou recentemente. Observa-se crescimento do número de publicações sobre o tema a partir de 2000, com tendência à condenação deste relacionamento e recomendações no sentido de limitá-lo.

No Brasil, o código de ética médica de 2009 aborda a questão. Os artigos 20, 104, 109 e 116 determinam que é vedado ao médico participar de anúncios de empresas comerciais, qualquer que seja sua natureza; deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa ou satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais. O médico deve, também, declarar relações com indústrias que possam configurar conflito de interesse, ainda que potencial 5 .

A ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária publicou em 12/2008 resolução que dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos. Esta resolução mostra-se sintonizada com as idéias sobre o assunto recentemente publicadas na literatura médica. O art. 7°-V proibe, na propaganda ou publicidade de medicamentos, incluir marcas nominativas, figurativas ou mistas de associações e/ou sociedades médicas, associações que representem os interesses dos consumidores ou dos profissionais de saúde e/ou selos de certificação de qualidade. O item VIII veda fazer propaganda ou publicidade de medicamentos e/ou empresas em qualquer parte do bloco de receituários médicos 1 .

A oftalmologia brasileira mantém-se relativamente alheia à influência da indústria no Conselho Brasileiro de Oftalmologia e nas diversas sociedades de áreas específicas da oftalmologia. A seguir apresenta-se dois exemplos.

O Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), órgão máximo da oftalmologia brasileira, mantém vínculos estreitos com a indústria de medicamentos, equipamentos e lentes, que financiam muitas de suas atividades. O CBO é uma sociedade civil sem fins lucrativos constituída em 1941. O CBO é o departamento de oftalmologia da Associação Médica Brasileira (AMB), e funciona como uma associação científica e cultural de médicos oftalmologistas que defende os interesses da oftalmologia, fiscaliza, concede títulos de especialista, promove congressos, etc. Edita os Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, revista de elevado prestígio científico. Várias sociedades oftalmológicas são filiadas ao CBO, podendo-se citar a Sociedade Brasileira de Catarata e Implantes Intra-oculares, Sociedade Brasileira de Cirurgia Refrativa, Sociedade Brasileira de Glaucoma, Sociedade Brasileira de Retina e Vítreo, entre outra

Na página da internet do CBO, assim como em material distribuído aos oftalmologistas do Brasil, como nos Relatórios de Gestão, a cada biênio, calendários, etc, a logomarca do CBO aparece ao lado da logomarca dos principais financiadores que, carinhosamente, são chamados de patronos (patrono = defensor, protetor, que financia; na Roma antiga, pessoa livre a quem estavam vinculados escravos – Houaiss  8).

No  “Relatório de Gestão 2007-2009” do CBO,onde são relatadas as atividades do biênio como “programas de formação e educação continuada“, “congressos“, “comunicação“, “projeção internacional“, “interface com poderes públicos“, “interface com empresas e entidades6 , páginas inteiras  estão dedicadas à promoção de algumas indústrias farmacêuticas, fabricantes de equipamentos, lentes de óculos e lentes de contato. O avental com o emblema do CBO é apresentado com a incorporação das logomarcas destes “patronos” (Figura 1). O relatório não presenta nenhuma informação sobre quantias recebidas pelo CBO desses “patronos”, assim como informações sobre outras formas de patrocínio, jantares, passagens, diárias de hotéis, inscrições em congressos, brindes, etc, oferecidos a funcionários ou membros da administração do CBO.

cbo1 - sociedades médicas

Figura 1 : Destaque do avental do CBO apresentado nas páginas 10 e 47 do relatório de gestão 2007-2009. (turvação da logomarca dos patronos foi realizada por nós, na imagem).

Outro exemplo refere-se a atividades promovidas pela Sociedade Brasileira de Glaucoma . O 3º Consenso Brasileiro sobre Glaucoma Primário de Ângulo Aberto, realizado em 2009,  reuniu 69 relatores convidados e deu origem a uma publicação 20. Nesta publicação consta o patrocínio de determinado laboratório que produz colírios usados para tratamento do glaucoma e consta agradecimento a este laboratório,  que assegurou os recursos logísticos necessários para que fossem reunidos em São Paulo “glaumatólogos de todos os principais quadrantes do país”. Destaca-se o fato de que não são informados quaisquer conflitos de interesse seja por participantes, seja pela própria Sociedade Médica.

Juramento dos médicos e das indústrias

Médicos assumem o compromisso de agirem na defesa dos melhores interesses dos pacientes, assim como da sociedade como um todo. O exercício da medicina é essencialmente uma atividade social. As associações médicas de especialidades ou associações médicas em geral, devem ser construídas em fundamentos éticos adequados baseados nessas mesmas premissas 9,13 .

As indústrias farmacêutica e de equipamentos ou produtos ligados à atividade profissional do médico possuem o compromisso de maximizar o capital e gerar lucro para seus acionistas. As indústrias não estão obrigadas moralmente a agirem no maior interesse dos pacientes ou coletivamente no melhor interesse da sociedade 9 .

A existência de um conflito de interesses entre a atividade médica e as indústrias é ínerente aos seus diferentes objetivos.

Brindes, presentes, motivações

A indústria farmacêutica dedica esforço considerável para criar um ambiente de relacionamento desde o início, com os médicos jovens durante a residência médica. Presentes, brindes, jantares, inscrições em simpósios e congressos são recebidos pelos residentes como um reconhecimento pelo sacrifício em horas de estudo e trabalho. O propagandista se coloca como um “amigo” do residente disposto a ajudá-lo e a transmitir informações e trazer novidades. A indústria desenvolve um relacionamento estreito com os médicos que prescrevem seus produtos e o resultado deste trabalho é verificado em pesquisas de prescrição realizadas junto às farmácias 3 .

A disponibilidade de amostras-grátis é um forte indutor para médicos prescreverem e pacientes utilizarem medicamentos mais caros, mas não necessariamente mais eficazes 2.

As motivações individuais de médicos frente ao relacionamento com a indústria são bem conhecidas: 1) titulação, por convites e participações em cursos, congressos, grupos de consenso; 2) reconhecimento ou satisfação pessoal de ser considerado uma autoridade em uma área do conhecimento; 3) sensação de pertencer a um grupo seleto de profissionais prestigiados; 4) dinheiro ou outros benefícios. Do lado das indústrias, os bilhões de dólares investidos anualmente neste relacionamento apresentam um retorno que é monitorado e serve de motivação para manter e zelar pela sua perpetuação 12 . Em 2006 estima-se que entre 27,7 e 57,5 bilhões de dólares foram gastos com a promoção de medicamentos junto aos médicos 14 .

A declaração de possíveis conflitos de interesses por parte do médico, seja frente ao paciente, seja em trabalhos científicos, apresentações ou palestras, tem sido questionada quanto à sua eficácia. A possível ineficácia da declaração de conflito de interesses decorre de: 1) indivíduos diferem naquilo que consideram como fonte potencial de conflito de interesse; 2) As declarações de interesses conflitantes geralmente não são passíveis de verificação; 3) há uma falta de clareza relacionada ao objetivo final da declaração; 4) não há dados sistemáticos mostrando como os indivíduos processam as informações, sejam aqueles que declaram a existência de conflito de interesse ou os que recebem a informação; 5) as declarações de conflito podem ser usados para “higienizar” uma situação problemática, sugerindo que a declaração da existência de conflito soluciona a questão e o indivíduo pode agir como se nada existisse; 6) estudos de comportamento humano mostram que os motivos individuais geralmente são inconscientes e que o comportamento frequentemente desvia-se do que seria considerado racional 2,19 .

Apesar de médicos compreenderem o conceito de conflito de interesses, existe uma tendência ao desenvolvimento de mecanismos psicológicos de racionalização e reinterpretação dos dados, ou dissonância cognitiva, que limita a eficácia de recomendações ou códigos de conduta externos ou auto-impostos. Provavelmente apenas a proibição de interações entre médicos e propagandistas, assim como a eliminação de brindes e amostras-grátis possa ser eficaz para reduzir a influência da indústria sobre o receituário médico 3,4 .

Propostas para limitar a influência da indústria sobre o médico

Devido à dificuldade de se mensurar a interferência dos brindes e outros favores sobre o comportamento do médico 11, devido à sua finalidade precípua de influenciar o receituário do médico e devido a eficácia duvidosa da declaração de conflito de interesses, foram propostas as seguintes políticas a serem adotadas por sociedades médicas de qualquer natureza e centros médicos acadêmicos, com relação às interações com as indústrias que atuam na área da saúde 2,15,10 :

1 – Brindes, presentes, refeições, passagens, etc – banimento completo.

2 – Amostras de medicamentos – proibição total, passível de ser substituída por vouchers para pacientes de baixa renda.

3 – Elaboração de listas de medicamentos padronizados – nenhum médico que recebe brindes, financiamentos, mantém relacionamento com laboratórios pode participar de comissões que decidem listas de medicamentos padronizados de instituições.

4 – Educação médica continuada – indústrias não podem dar suporte financeiro direto a nenhum programa específico. As contribuições devem ser doadas à instituição que, por sua vez, direciona a programas aprovados por comissões internas.

5 – Fundos para viagens de médicos – As contribuições devem ser doadas à instituição que, por sua vez, decide como utilizá-los.

6 – Contratos de pesquisa ou consultoria – pagamentos para consultoria ou palestras devem ser feitos apenas quando existir um contrato específico entre a indústria e o médico ou pesquisador; contratos sem objetivo claramente identificável devem ser considerados como brindes. Palestrantes pagos ou financiados por laboratórios devem ser considerados como uma extensão do aparelho de marketing das indústrias.

7 – Associações de especialidades não devem fazer acordos ou negociações que envolvam o uso do nome da organização em seu marketing de bens ou serviços 13 .

8 – Nenhuma logomarca de indústrias deve aparecer em pastas, sacolas, canetas ou outros brindes, assim como em publicações distribuídas para membros da sociedade que comparecem a encontros científicos 15.

9 – Prêmios e bolsas de estudos não devem receber o nome do laboratório ou indústria patrocinadora 15.

10 – Adotar transparência das contas relacionadas a patrocínios, inclusive disponibilizá-las no website: compra de espaços em áreas de exposição de congressos, compra de espaço publicitário em revistas editadas pelas associações, doações de qualquer natureza, financiamentos, passagens, diárias de hotéis, jantares, programas de ensino, patrocínio de reuniões para estabelecimento de consensos, etc 13 .

A adoção destas medidas envolve um período de ajustes, mudanças no modo de operação e mesmo redução de recursos disponíveis para atividades de inquestionável valor. Acredita-se, entretanto, que trarão benefícios para os pacientes e para a sociedade com um todo.

Os critérios para estabelecimento de consensos e recomendações de “melhores práticas” necessita ser modificado. Existem evidências de que, em diversos casos, esses consensos não estão direcionados para os melhores interesses dos pacientes e sim para interesses daqueles que lucram com as práticas recomendadas, devido a influência de financiadores ou à proximidade de indústrias 2,17 .

Há que se cuidar para que recomendações ou normas de conduta que tenham por objetivo restringir a influência da indústria no receituário médico e nas atividades das sociedades médicas, não se prestem a ajudar a legitimar e mesmo criar uma proteção jurídica para a indústria, ao invés de cumprir o seu papel precípuo 14.

Opiniões dissidentes

Encontra-se na literatura pontos de vista dissidentes com relação às recomendações de fortes restrições aos contatos com a indústria apresentados acima.

Stell 17 critica as regras moralistas e draconianas propostas, particularmente no que se refere à proibição de acesso a campus universitários e hospitais de ensino, de propagandistas e conferencistas ligados a laboratórios 2. Chama a atenção para o fato de que a medicina é uma arte-que-utiliza-a-ciência e que as demonstrações de novos produtos desenvolvidos pela indústria promove familiaridade, aquisição de habilidades técnicas, bons resultados, benefício para os pacientes, lealdade a marcas. Competição, busca de prestígio, dedicação, brilhantismo, técnicas engenhosas com ganhos evidentes para todos, não necessariamente são dominados pelo dinheiro. Os médicos deveriam manter postura crítica com relação ao material de divulgação que recebem e demandar por material de boa qualidade. Formas de parcerias com a indústria farmacêutica que possam trazer mais benefícios do que malefícios devem ser buscadas 7,16 .

Conclusão

Associações médicas em geral, incluindo aquelas de especialidades, são entidades civis que não se encontram sob o poder fiscalizador direto dos CRMs ou do CFM. Entretanto estas associações devem agir em consonância com os princípios que regem a profissão médica. Neste sentido devem os nossos conselhos, assim como a ANVISA, se debruçar sobre os conflitos de interesses que permeiam as relações entre médicos e sociedades médicas com as indústrias farmacêutica e de equipamentos, impondo limites e orientando. Devem ser banidas práticas que colocam em dúvida a integridade da profissão ou a defesa dos interesses dos pacientes e da sociedade como um todo. Urge que tiremos o atraso de vários anos e que códigos de conduta, normas e regras rígidas de transparência sejam estendidos a instituições de ensino e pesquisa, hospitais, residências médicas e associações médicas de qualquer natureza, assim como aos grupos que promulgam consensos de “melhores práticas baseadas em evidências”.

Referências
1- ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária Resolução – RDC n° 96 de 17 de dezembro de 2008 www.anvisa.gov.br
2- Brennan, T.A.; Rothman, D.J.; Blank, L.; Blumenthal, D.; Chimonas, S.C.; Cohen, J.J.; Goldman, J.; Kassirer, J.P.; Kimball, H.; Naughton, J.; Smelser, N. Health industry practices that create conflicts of interest. A policy proposal for academic medical centers. JAMA 2006; 295: 429-433
3- Brody, H. Pens and other pharmaceutical industry gifts Am. J. Bioethics 2003; 3: 58-60
4- Chimonas, S; Brennan, T.A.; Rothman, D.J. Physicians and drug representatives: exploring the dynamics of the relationship. Soc. Gen. Int. Medicine 2007; 22:184-190
5- Código de Ética Médica – Resolução CFM n° 1931/2009 (Publicada no D.O.U. de 24/12/2009, seção I, p. 90) – disponível em www.portalmedico.org.br
6- Conselho Brasileiro de Oftalmologia – Relatório de gestão 2007-2009 www.cbo.com.br
7- DeMaria, A. N. Your soul for a pen? J. Am. Coll. Card. 2007; 49:1220-1222
8- Dicionário Houaiss da lígua Portuguesa Edit. Objetiva, Rio de Jaeiro, 2001
9- Jampol, L.M.; Packer, S.; Mills, R.P.; Day, S.H.; Lichter, P.R. A perspective on comercial relationships between ophthalmology and industry. Arch. Ophthalmol 2009; 127:1194-1202
10- Kassirer, J.P. Professional societies and industry support. What is the quid pro quo? Perpespectives in Biology and Medicine 2007; 50:7-17
11- Katz, D.; Caplan, A.L.; Merz, J.F. All gifts large and small. Am. J. Bioethics 2003; 3: 39-46
12- Lichter, P.R. Debunking myths in physician-industry conflicts of interest. Am. J. Ophthalmol 2008; 146: 159-171
13- Pellegrino, E.D.; Relman, A.S. Professional medical associations. Ethical and practical guidelines. JAMA 1999; 282: 984-986
14- Podolsky, S.H.; Greene. J.A. A historical perspective of pharmaceutical promotion and physician education. JAMA 2008; 300: 831-833
15- Rothman, D.J.; McDonald, W.J.; Berkowitz, C.D.; Chimonas, S.C.; DeAngelis, C.D.; Hale, R.W.; Nissen, S.E.; Osborn, J.E.; Scully Jr., J.H.; Thomson, G.E.; Wofsy, D. Professional Medical Associations and their relationships with industry. A proposal for controlling conflict of interest. JAMA 2009; 301:1367-1372
16- Sade, R.M. Dangerous liasions? Industry relations with health professionals (introduction) Journal of law, medicine & ethics 2009; 37(3): 398-400
17- Stell, L.K. Drug reps off campus! Promoting professional purity by suppressing commercial speech. Journal of law, medicine & ethics 2009; 37(3): 431-443
18- Sniderman, A.D.; Furberg, C.D. Why guideline-making requires reform. JAMA 2009; 30:429-431
19- Weinfurt, K.P.; Friedman, J.Y.; Dinan, M.A.; Allsbrook, J.S.; Hall, M.A.; Dhillon, J. K.; Sugarman, J. Disclosing conflicts of interest in clinical research: Views of institucional review boards, conflict of interest committees, and investigators. Journal of law, medicine & ethics 2009; 37(3): 581-591
20 – Sociedade Brasileira de Glaucoma. 3º Consenso Brasileiro Glaucoma Primário de Ângulo Aberto (Editor : Augusto Paranhos Jr.) ; São Paulo; BestPoint, 2009

Dúvidas?

Consultas presenciais – Rua Fernandes Tourinho 264 – oitavo andar – Belo Horizonte – MG – Tel: +5531 32132666 / +553132266840

Consultas virtuais – +5531 999150580