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Tratamento da Retinose Pigmentar em Cuba

13 julho 2017

“Nunca na história passada, o charlatanismo médico foi um atividade comercial tão efervescente como atualmente”  ….   “é um paradoxo: o  crescimento simultâneo da ciência médica moderna no século 20, ao lado do crescimento da falta de senso da pseudo-ciência médica”

JH Young – The Medical Messiahs
Retinose Pigmentar

Retinose pigmentar é um grupo heterogêneo de doenças oculares genéticas que  acometem a retina, causam cegueira noturna, redução do campo de visão e podem levar à cegueira. Ocorre em todo o mundo, atinge homens e mulheres, é uma doença crônica que apresenta evolução variável entre os pacientes. Não existe tratamento capaz de alterar o curso da doença.

Por se tratar de doença que não dispõe de tratamento com eficácia comprovada, diversos tratamentos ineficazes foram promovidos ao longo dos séculos e vendidos para obter lucro. Alguns desses tratamentos, quando divulgados, foram recebidos com entusiasmo e promoveram verdadeiras peregrinações de pacientes. Em todos os casos, acabaram descartados devido à sua ineficácia, falta de fundamento e ausência de trabalhos científicos que comprovassem os alegados resultados.

Tratamento da Retinose Pigmentar em Cuba

Na década de 1990  difundiu-se no Brasil e em outros países, notícia sobre a existência de um tratamento para a retinose pigmentar desenvolvido em Cuba. Apesar da ausência de evidências científicas, este tratamento secreto e milagroso, atraiu muitos portadores da doença, em busca de tratamento da doença genética para a qual a oftalmologia mundial nada podia oferecer.

O isolamento de Cuba devido ao regime político totalitário e a ideia de que a medicina estaria avançada nesse pequeno País, ajudou a revestir de mistério o alegado tratamento, como que justificando o desconhecimento do resto de mundo. A ausência de publicações em revistas internacionais fez com que oftalmologistas brasileiros, embora desconhecendo em que consistia o secreto tratamento, se manifestassem no sentido da inexistência de tratamentos eficazes para a doença, seja em Cuba ou em qualquer outra parte do mundo.

A estratégia cubana para tratamento da retinose pigmentar consistiu em tratamento combinado multi-terapêutico através de quatro procedimentos aplicados aos candidatos em busca da alegada cura. Envolvia 3 semanas de hospitalização com custo de aproximadamente 10.000 dólares. Recomendava-se repetição de alguns procedimentos a cada seis meses, a um custo aproximado de 4.000 dólares (Duquette, 2010).

Os quatro procedimentos do tratamento cubano consistiam em:

1) procedimento cirúrgico supostamdente fundamentado em teoria vascular, ou cirurgia revitalizadora temporal, de transposição autóloga, pediculada, de gordura retro-orbitária para o espaço supra-coroideo (Molina – vídeo);

2) Ozonioterapia, aplicada diariamente durante 15 dias, com o equipamento Ozomed, por via retal mediante a introdução de uma sonda fina através do anus(Aguiar & Baéz, 2009). Segundo Aguiar e col. (2015), a ozonoterapia também pode ser realizada através de 10 aplicações de auto-hemoterapia. Neste caso, retira-se 200 ml de sangue do paciente e submete-se o sangue coletado ao tratamento com ozônio, no próprio frasco de coleta e, em seguida, se administra o sangue na veia do paciente;

3) Eletroterapia ou eletroestimulação, aplicada nas regiões cervical e plantar dos pacientes com o equipamento EQ-1604, com voltagem fixa de corrente sinusoidal de baixa frequência por um período de 10 minutos, durante 10 dias;

4) Magnetismo diretamente na região ocular, com o equipamento Geo-200, durante 20 minutos, diariamente por 10 dias (Espinosa e col., 2010)

A ozonioterapia, a eletroterapia e o magnetismo, segundo os proponentes, são técnicas de medicina natural,  terapia eficaz para complementar a reabilitação visual.  Alegam que, além de inócuos, são baratos e seguros para diferentes doenças infecciosas, inflamatórias, circulatórias e degenerativas, com capacidade para destruir bactérias, vírus e fungos. Os efeitos desse tratamento seriam  passageiros, tornando necessário repetir as aplicações com frequência pré-determinada, segundo critérios personalizados para cada paciente (Aguiar & Baéz, 2009; Espinosa e col, 2010).

O tratamento cubano não encontrou respaldo na literatura mundial e não foram publicados trabalhos que confirmassem a sua eficácia. Duas revisões sobre o tema (Duquette, 2010; Fishman, 2013) concluíram que o tratamento não apresenta relação com as causas da doença, provoca danos em alguns pacientes, não há comprovação de que tenha efeito, carece de validade e não deve ser recomendado. Essas revisões evidenciaram riscos de diversas complicações como estrabismo e infecções e mesmo piora da visão, além de danos psicológicos relacionados à falsa esperança ou à decepção cruel, além da perda financeira.

A notícia deste tratamento difundiu-se no Brasil e muitos pacientes ajuizaram ações para obrigar o Estado a arcar com esse tratamento não disponível no Brasil. O judiciário brasileiro deu guarida a grande número de demandas e condenou o Estado a custear viagem e tratamento para muitos pacientes, em um dos exemplos de judicialização da saúde envolvendo pseudociência.

O tratamento cubano da retinose pigmentar causou enormes prejuízos ao sistema de saúde pública brasileiro, com o custeio da viagem e tratamento de muitos brasileiros portadores de retinose pigmentar, impostas por sentenças judiciais em primeira instância e mesmo no STJ. Em 2011, o STJ deu provimento à demanda de pacientes e impôs ao Ministério da Saúde a obrigação de pagar  viagem e tratamento da retinose pigmentar em Cuba. Na ocasião, um dos ministros favorável a impor ao Estado Brasileiro o onus de  viagens e tratamento em Cuba, argumentou: “pelo que leio nos veículos de comunicação, o tratamento dessa doença, com êxito, está realmente em Cuba”, enquanto outro ministro afirmava “Eu sou muito determinado nessa questão de esperança” (Notícias STF, 13/4/2011).

Tratamento da Retinose Pigmentar no Brasil – Décadas de 1980-1990

No Brasil, já tivemos o nosso equivalente ao tratamento cubano da retinose pigmentar fundamentada em pseudociência. Trata-se da injeção de “fator de transferência” obtido do sangue de doadores, que ficou conhecida como “vacina para paralisar a progressão da retinose pigmentar” (Amorim e col., 2005; Rocha, 1987; Gonçalves, 2011), desenvolvida no Instituto Hilton Rocha (IHR) e que esteve disponível apenas neste local, durante vários anos na década de 1980 e 1990. Houve verdadeira peregrinação de portadores de retinose pigmentar oriundos de diferentes regiões do Brasil, que afluíam a este Instituto que, nessa ocasião, detinha grande prestígio nacional, para serem tratados com essa “vacina”.

Poucas são as referências a este tratamento, mas pode-se encontrar na internet o relato esporádico de pacientes que dizem ter recebido este tratamento. Segundo relatos de pacientes (Isabele AA, 2010; Yolanda V, 2010), os pacientes eram atendidos no IHR, onde se indicava repetir todos os anos exame de campo visual manual, retinografia de contraste e um exame de sangue no laboratório do próprio IHR para medir os “antígenos da retina”. Após os resultados,  era feita a indicação do uso da vacina, que era aplicada 3 dias da semana por 4 semanas, repetindo-se o tratamento em intervalos de 6 meses. Os exames e o tratamento eram cobrados dos pacientes.

O Instituto Hilton Rocha deixou de funcionar há mais de uma década  e esse  tratamento era oferecido apenas nessa Instituição, a exemplo do tratamento oferecido apenas em Cuba. O tratamento vendido no IHR consistia na injeção de “vacinas com fator de transferência”  preparadas com  material extraído do sangue de doadores. Não foi possível comprovar a eficácia desse tratamento e não foram publicados estudos sobre resultados e complicações. O tratamento foi abandonado por não ter sido comprovada qualquer eficácia e devido ao risco de transmissão de doenças como hepatite e AIDS, transmitidas através do uso de material extraído do sangue de doadores.

Os tratamentos oferecidos em Cuba e no Instituto Hilton Rocha exemplificam a promoção e venda de produtos ou tratamentos sabidamente não eficazes ou que não foram adequadamente testados.

Evita-se a palavra charlatanismo ao se referir à divulgação sensacionalista de práticas de cura que carecem de fundamento científico ou a exploração da credulidade pública, induzindo pacientes a acreditarem em tratamentos cujos benefícios não estão comprovados. Referir-se a alguém como charlatão pode gerar acusação de crime de calúnia, caso este indivíduo não tenha sido condenado em devido processo judicial. Charlatanismo é  crime previsto no Código Penal: inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível ou exercer o curandeirismo é infração passível de pena de detenção, além de multa. Entretanto, para receber a alcunha de charlatão há que se submeter a demorado processo judicial e é muito raro que isso ocorra, mesmo na existência de provas contundentes.

Tratamentos para  retinose pigmentar são exemplos de uso de  pseudociência, supervisionada e oferecida por médicos de prestígio. O respaldo de autoridades é  uma das estratégias para legitimar procedimentos não aprovados pela medicina e exemplifica a obtenção de lucro com tratamentos ineficazes .

As modalidades de tratamento da retinose pigmentar, cubana ou brasileira, podem ser classificadas como práticas não convencionais de tratamento médico, medicina alternativa ou complementar e representam uma das facetas do pluralismo médico. Este grupo heterogêneo de práticas dirigidas ao tratamento ou cura de doenças coexiste com a medicina tradicional que procura fundamentar as suas práticas em evidências científicas. Entre as práticas de cura alternativa estão: cura através de cristais, galvanismo, magnetismo, cura através da dieta ou suplementos nutricionais, homeopatia, cura pela mente, medicina étnica e numerosos outras modalidades de abordagem à doença ou ao sofrimento humano.

O avanço do conhecimento científico e o surgimento de métodos de diagnóstico e tratamento reconhecidamente eficazes não reduziu a atração do ser humano pelas práticas alternativas de cura, não fundamentadas em evidencias científicas. Pelo contrário, observa-se crescimento do mercado ligado às diferentes modalidades de medicina alternativa ou complementar. Estudos sociológicos das práticas de cura evidenciam que sempre existiram diversas correntes de pensamento sobre as abordagens à doença e ao sofrimento humano.

Portadores de doenças crônicas, particularmente que tendem a evoluir desfavoravelmente, com o atendimento oferecido pela medicina tradicional são particularmente atraídos e vulneráveis a tratamentos ineficazes. Notícias sobre opções de tratamento que ainda não foram adequadamente testados, o sensacionalismo e o desejo de obter lucro fácil fazem com que seja impossível o controle de diferentes abordagens que atraem candidatos a utilizá-las. A alcunha pejorativa de charlatanismo foi substituída por termos como pseudociência ou como abordagens não ortodoxas de tratamento de doenças, pluralismo médico, medicina alternativa ou complementar.

Referências

1)Aguiar, LJP; Báez, OG Estrategia cubana para el tratamiento de la retinosis pigmentaria Revistas Médicas Cubanas, 2009; 22 (sup 2): 281-287 http://bvs.sld.cu/revistas/oft/vol22_sup02_09/oft16309.htm; 2) Aguiar, LJP; González, CR; Mora, MH; Castaño, AB; CID, AML Reacciones adversas de la ozonoterapia en pacientes con retinosis pigmentaria. Revista Cubana de Oftalmoloia 2015; vol. 28 (4)   http://scielo.sld.cu/pdf/oft/v28n4/oft05415.pdf; 3) Amorim, D.S; De-Maria-Moreira, NL; Mendonça, RX; De-Maria-Moreira, D; Herco, BVS Retinose Pigmentosa Grupo edit. Moreira Jr; 2005; http://www.moreirajr.com.br/revistas.asp?fase=r003&id_materia=3317 (consultado em 16/8/2016); 4) Berger, M. The era of enlightenment ends with the golden calf. Lexture given during the Skrabanek Foundation Colloquium “Medical Utopianism: A threat to helath”, London, 2002; 5) Beyerstein, BL Distinguishing science from pseudoscience. Revised, October 1996, Centre for Curriculum and Professional Development, Canada; 6) Duquette, J. Is the evidence supporting the Cuban treatment for retinitis pigmentosa? Institut Nazareth & Louis Braille, 2011 (Canada); 7) Espinosa, SMG; Luque, RF; Pérez, SRF; Salomón, MD; Mayet, IG Eficacia del uso de ozonoterapia, magnetismo e electroestimulación en pacientes con retinosis pigmentaria e glaucoma. Revistas Medicas Cubanas (Medisan) 2010; 14(4): 453-463 – http://bvs.sld.cu/revistas/san/vol_14_4_10/san06410.htm; 8) Fishman, G.A. A historical perspective on the early treatment of night blindness and the use of dubious and unproven treatment strategies for patients with retinitis pigmentosa. Survey of Ophthalmology 2013; 58: 652-663; 9) Gale, N The sociology of traditional, complementary and alternative medicine. Sociology Compass 2014:805-822; 10)Gambrill, E. PROPAGANDA in the helping professions. Oxford University Press, New York, 2012, 570p.; 11) Gonçalves, ER Retinose pigmentar:fantasias e realidade.; 12)  http://diariodeumaretinoseira.blogspot.com.br/2011/10/retinose-pigmentar-fantasias-e.html (consultado em 02/09/2016); 13) Isabele A.A. Retinose pigmentar. Relato pessoal. http://orkut.google.com/c476560-tbfb863d8499e78e4.html (consulado em 5/9/2016); 14) Kaptchuck, T.J.; Eisenberg, DM Varieties of healing, 1: Medical Pluralism in the United States. Ann Intern Med. 2001, 135:189-195; 15) Kaptchuck, T.J.; Eisenberg, DM Varieties of healing, 2: A Taxonomy of unconventional healing practices. Ann Intern Med. 2001, 135:196-204; 16) Kloetzel, K. O ABC do Chalatão Edições Mandaracu, São Paulo, 1988, 122p.; 17) Molina, OF      Tratamiento Quirurgico de la Retinosis Pigmentaria https://www.youtube.com/watch?v=uZyCELOyN0U (visualizado em 31/8/2016); 18) Notícias STF 13/4/2011 (consultado em 16/08/2016) http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=177147; 19) Conselho Federal de Medicina – Parecer CFM n 33/13; 20) Conselho Federal de Medicina – Resolução CFM n 1.982/2012; 21) Rocha, H Novas Perspectivas Imunológicas em Oftalmologia. Anais do XIX Congresso Brasileiro de Oftalmologia 3 a 10-9-77; Rio de Janeiro – Brasil ; p. 235-271 (Conferência Magistral); 22) Tamiozo, AN; Rocha, H; Gonçalves, ER; Antunes, LJ ERG e AgS em filhos de pacientes com retinose pigmentar. Arq. Bras. Oftalmol. 1987; 50:53-65; 23) Vieira, Y. Relato pessoa. Publicado em 23/04/2010. http://www.revistavigor.com.br/2009/10/02/retinose-pigmentar-celulas-tronco-para-recuperar-a-visao/ (consultado em 3/9/2016); 24) Young, JH The medical Messiahs, A social History of health quackery in twentieth-century America. Princeton University Press, Princeton, 1992 ; 498 p.; 25) Wikipedia List of withdrawn drugs. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_withdrawn_drugs (consultado em 14/8/2016); 26) http://www.portalmedico.org.br/jornal/jornais1999/0199/excelencia.htm (consultado em 31/8/2016) Retinose Pigmentar Elisabeto

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